domingo, 6 de junho de 2010

Não estamos sozinhos

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Junho não teve um início bom. Acho que nesses últimos vinte meses que decidi prestar o concurso para o Instituto Militar de Engenharia, nunca me senti tão estressado, tão mal, tão desconfiante. Nem nas vésperas da prova em outubro do ano passado, eu me senti tão desmoralizado como eu me sinto agora. Olho para minhas mãos e fito os inúmeros pedaços de pele que se descolam de minhas palmas. O médico disse que isso é devido ao estresse, à tensão. Acho que a última vez que tive isso foi quando decidi largar a Aeronáutica, deixar os irmãos que eu fizera na Epcar, chutar o balde para uma vida que eu levara quatro anos para construir. E agora, cá estou fitando o vazio. Com dor de cabeça, com sono, com fome e sem vontade de comer. Tentando em vão estudar os “delta-G” e “delta-H” da vida. Agora eu tenho certeza, junho não teve um início bom.

Olho mais uma vez o livro de Química. Foram as fórmulas que se embaralharam em meio às palavras ou será mesmo esta dor de cabeça que está me deixando maluco? Canso de tentar achar esta resposta irrelevante e desisto de vez de estudar. A dor de cabeça continua e meu coração aceleradamente bate pedindo que eu tome alguma atitude. Ouço o sinal do intervalo tocar. Vejo o Marco Aurélio sair da sala. Amaldiçôo-me por saber que perderia mais uma aula de Química. Olho para os lados e não vejo ninguém me convencer a fazer o contrário. Chega! Hora de fazer alguma coisa. Recolho meu material e vou embora do curso. Para onde? Não faço idéia.

É estranho andar na rua. Rostos e mais rostos desconhecidos. Mas todos familiarmente escondendo algum tipo de preocupação. Olho para o rosto de uma mulher a espera de um ônibus. Seu olhar cruza o meu. Ela desvia o olhar. Eu conto até dois. Pronto, ela olhou de novo. É engraçado né? Nunca conseguimos ignorar se percebemos alguém nos fitando. É uma reação instantânea. Mas porque? Qual o sentido de se querer olhar alguém de novo sabendo que isso é o máximo que será feito? Nunca iremos nos falar. Compartilhar nossas preocupações. Só iremos olhar, não enxergar. O que será que as pessoas vêem quando olham para mim? “Meu Deus, que nariz grande!” Ou será “Ime-Ita? É maluco!”. Devo ser... Para estar viajando assim com um simples olhar de uma mulher que nem é bonita. Caramba cara, volta pro curso e recomece a estudar.

Mas algo me diz pra continuar ali. Eis que vejo um ônibus verde e branco se aproximar e parar no ponto. Número: 762... Destino ou não, é melhor eu fazer isso. Lembro da noite anterior: a ligação, a elevação na voz, as discussões... É fogo namorar em ano de Ime-Ita. Imagine dois anos então... Namorar alguém que compartilha dos mesmos sonhos que você. Que estuda contigo todos os dias. Que se estressa tanto ou até mais que você pelos mesmos motivos. E que cujo relacionamento vai ruindo aos poucos. Pois os olhos vão se acostumando cada vez mais a temida rotina. Olhos acostumados, brigas sem motivo. Estes não são os pesadelos que afligem todo casal? E os sonhos compartilhados do princípio tornam-se empecilhos para o futuro da relação. E o amor sentido pela felicidade um do outro sobrepõe a vontade de estar-se junto. E eu subo no ônibus que me leva até a casa dela. Nos beijamos. Choramos juntos. Nos beijamos mais uma vez. E terminamos.

O que falta para este início de junho ser o pior que já tive? Não consigo estudar. Não tenho mais minha namorada. A dor de cabeça agora é uma constante. Meu sonho de Ime está por um fio. O que será que falta? Repasso rapidamente a semana em minha cabeça. As aulas na auto-escola, o passeio ao Ita... Está aí uma sorte da qual não devo reclamar: o fato de termos encontrado, na volta de São José dos Campos, minha saudosa turma da AFA na parada que fizemos na Dutra. Araújo, Ilton, Irineu, Lobo, Hélton... Tantos rostos conhecidos e ao mesmo tempo tão diferentes. As saudades dos anos de Epcar afloram. Da turma que eu deixara. Dos irmãos por todo o Brasil que eu fizera. Da minha família... E eu ansioso abraço a todos, pergunto por todos. “Como vocês estão? Já voaram?” Sim. Eles já voaram. Este é o requisito para todo Cadete-Aviador no segundo ano da AFA. E também, o sonho de todo aluno da Epcar, como o meu também fora. Se eu tivesse prosseguido na Aeronáutica, hoje eu já teria feito o vôo solo. Estaria bebendo, junto com eles, as glórias da elite da aviação militar. Festejando, rindo... Com meus irmãos. Estaria sim, se não tivesse desistido.

E agora, o fardo de desistir em prol desse caminho incerto para o Ime torna-se um peso quase insuportável. Eu desisti da AFA. Desisti da Escola Naval. No ano em que sai da Epcar, eu passei na UFRJ e, igualmente, desisti. Já são quase dois anos. Dois anos abrindo mão daquilo que muitos querem. Dois anos abrindo mão daquilo que um dia meus pais sequer sonharam em alcançar. Tudo por causa do Ime... E eu ouço meus pais falarem. Minha família me questionar. Meus amigos me criticarem. Aqueles que não entendem me seduzirem com palavras acolhedoras aos ouvidos de quem há muito está imerso nesta vida de IME-ITA. E eu me lembro daqueles que como eu estiveram nesta mesma situação. Que desistiram e hoje estão bem. Realizando cursos no exterior. Vivendo a vida que há tempos estou me privando. A troco de nada. Sem resultados. Nada.

O que eu farei agora? Estou cansado. Desmotivado. Abro meus olhos e vejo o relógio: 11:00... Mais um dia dormindo até mais tarde. Mais um dia sem estudar. Daqui a pouco tem simulado de Química. A certeza de eu me foder é certa. Levanto e tomo um banho. Arrumo minha mochila e saio em direção ao curso. Comer pra quê? Só pra lembrar que a comida já não tem gosto em minha língua? Não preciso disso. Pelo menos não agora. Eu preciso é de alguém para falar comigo. Me jogar pra cima. Esmurrar minha cara pelo babaca que tenho sido para que, finalmente, caia a ficha de que eu tenho que voltar a estudar. Olho para a data em meu celular: “Puta que Pariu! Junho tá foda!”

Sento na carteira azul do Elite. Olho para o quadro preso na parede azul da sala. Vejo um aluno passar ao meu lado com aquela velha camisa azul do Elite. Porra! Não agüento mais azul. Acho que eu preferia levar um tiro de 12 na cabeça a ter de voltar aqui no Elite ano que vem para falar sobre o IME. Quanta confiança hein... Já falo do IME como se fosse certo eu estar lá ano que vem. Parece até que o mês de junho está tudo numa boa... Fecho meus olhos e abaixo a cabeça. Até eu estou conseguindo me criticar por sonhar com o IME... Tá fogo...

Quando o Élder entrou na sala, fiquei imaginando se ele conseguiria me falar aquilo que eu tanto ansiava. Para minha surpresa, todas as minhas esperanças de reaver minha motivação foram expurgadas no momento em que ele abriu a boca. “Hoje quem está desmotivado sou eu. Quero que alguém se levante e vá lá na frente falar alguma coisa pra me motivar.” Quê!? Tá de sacanagem! Agora fudeu! O cara que deveria tentar me motivar a estar aqui disse que está desmotivado. Ferrou mesmo. Vou me levantar e ir embora pra UFRJ agora.

“Raquel! Levanta e vai lá.” Disse ele para a aluna que muito contrariada se levantava. Fiquei curioso no momento em que ela começou a falar. Apesar de sua aparente timidez e a falta de um discurso previamente elaborado, sua voz logo se tornou segura e todos naquela sala, aos poucos, iam vendo no relato dela os mesmos medos comuns. E assim, a ressonância das palavras dela fazia com que as pessoas se identificassem, pois afinal, aquela ali não era um professor, era um aluno. Aluno como todos nós. E quando o Élder perguntou quantas vezes ela chorara culpando a pressão dentro daquelas paredes da IME-ITA, todos concordaram acenando a cabeça quando ela disse que foram inúmeras. Era disso que eu precisava. Era disso que eu tinha me esquecido quando a desconfiança em relação ao IME aportou em meu coração. Aquela mulher conseguira despertar em mim a lembrança que há muito eu havia deixado na Epcar.

A dor de cabeça sumira. A vontade de estudar e a motivação para continuar naquela sala de IME-ITA retornavam ao meu âmago. Olhei para o lado e encontrei os olhos da Hannah. Ela apontava para o tablado e me dizia para subir lá e falar também. Ela sabia que eu tinha algo a dizer. Como sempre soube nestes quase dois anos que estivemos juntos. Meus olhos me revelavam. Eu tinha algo a dizer. Chamei o Élder e, contrariando todo meu corpo de jovem que odeia falar na frente da turma, me levantei e subi no tablado para falar sobre meu péssimo início de junho.

A verdade é que quando subi naquele tablado, eu não sabia exatamente o que ia dizer. Nem de longe, eu imaginava que, um dia, falaria da minha vida daquele jeito. Para pessoas as quais eu conheço muito pouco. Para pessoas as quais eu nem conheço. E eu comecei o relato de minha semana. Como, até bem pouco tempo atrás, eu pensara em desistir. Relatei meu encontro com meus irmãos da Epcar. A pressão de não ter ido pra AFA ou pra Escola Naval. Até mesmo de meu término de namoro. Minhas mãos tremiam. Minhas pernas bambeavam. Apesar da minha mente estar segura no que se estava sendo dito, meu corpo não correspondia. E eu me sentei na cadeira para não cair e continuar a falar. Sabia que aquilo ali teria um propósito.

Lembrei da noite de quarta-feira enquanto voltávamos do Ita. Eu viera deitado no ônibus conversando com minha quase irmã Raíssa, do Elite da Tijuca, sobre como chegamos na IME-ITA. Lembro dela falando de sua turma da AFA a qual ela também encontrara na parada do ônibus. De como fora para ela desistir da AFA também. De como as pessoas reagiram ao saber que ela voltaria às salas de aula para prestar o IME. Mais um ano de estudos. Mais um ano se privando de tudo. Lembrei também das noites insones que passara conversando com meu amigo Biro-biro no alojamento. Sobre como era difícil se privar de tantas coisas dado o fato que ele próprio estudava há anos no Elite. Lembrei também dos “puxões de orelha” que levara da Raíssa quando ela percebeu o quão desfocado eu estava. E, conforme minhas palavras saiam de minha boca, eu percebia o quão importantes aquele dois já tinham se tornado em minha vida. E todo aquele sentimento, resgatado pela Raquel quando ela começara a falar, rapidamente fez sentido. E logo, todo meu propósito era alcançado. Eu finalmente chegar onde queria: o de que é o companheirismo que nos faz crescer, que nos motiva a continuar.

Lembrei de meus irmãos na Epcar, de meus irmãos na Tijuca, de meus irmãos em Madureira. De como eu havia crescido, não só intelectualmente com eles, mas também como pessoa. Dos dias em que acordávamos cedo. Xingávamos um ao outro. Discutíamos. E depois, juntos estudávamos. Nos motivávamos a ir em frente. Lembrei do dia do resultado do IME ano passado. Quando eu saíra cego pela portaria em direção à praia Vermelha quando eu vi que meu nome não estava na lista. Lembro de minha Hannah inconsolável. De como eu a abracei e ficamos olhando aquela praia da qual não faria parte de nosso futuro no ano seguinte. Não sabíamos o que dizer. Não havia nada a ser dito. Olhamos um para o outro e, mesmo com as lágrimas nos cegando, enxergamos um ao outro. E naqueles olhos eu vi a motivação para não desistir. Não importa o que tivesse acabado de acontecer: 2010 seria diferente.

Os rostos na minha frente olhavam para mim com uma expressão curiosa. Eu não sabia o que dizer. A emoção já tinha tomado conta de minhas palavras e eu nem sabia se o que eu estava dizendo fazia sentido. Foi quando o Élder então levantou e subiu no tablado. É claro que ele tinha algo a dizer. Ele, mais do que qualquer outra pessoa que eu conheço, saberia falar sobre tudo o que passamos, pois afinal, ele passara por tudo isso também. E o mais importante: não desistira. Foi assim que seu breve relato com o qual todos estavam acostumados a ouvir e a se identificar, aos poucos, foi tomado pela mesma emoção que tomara minhas palavras. O que víamos não era mais nosso coordenador lá na frente. Era nosso amigo e companheiro. Alguém que estava lá por que, realmente, só queria nos ajudar. E as lágrimas logo se formam em seus olhos e, em pouco tempo, já tomavam seu semblante. Eu olho para os lados, vejo muitos já chorando. Olho para minha ex-namorada e a vejo de cabeça abaixada. Olho para o meu amigo Leandro e aperto sua mão. Caramba, consegui!

O discurso agora gago do Élder termina e ele aperta a minha mão e sai pela porta. Todos os rostos inchados começam a me fitar. Beijo a bochecha de minha Hannah e levanto para beber água. Ao sair, dou um abraço bem forte na Alana que ainda tentava limpar as lágrimas. Continuo andando em direção ao bebedouro. Foi assim que meu Junho começou.